Sónia, a professora de Hitória.
Capítulo 1 – O Lopes
Chegou cansado. Tivera um dia extenuante no escritório e agora só lhe apetecia cair no sofá em frente da televisão. Ver algum programa estúpido que o não fizesse pensar e lhe permitisse relaxar um pouco.
Tomou um duche, preparou uma bebida. Sentou-se na sala à espera que a mulher chegasse para comerem uma refeição ligeira. Acendeu um cigarro. Deu um gole no Martini gelado. Sentiu uma sensação agradavelmente fresca descendo-lhe pela garganta. Procurou, num gesto automático, o telecomando da televisão. Fez um zapping à procura de coisa nenhuma, ou talvez para certificar-se de que o mesmo funcionava bem.
Percorreu os canais um a um, até chegar ao canal de desporto. Jogo de voleibol. Deixou ficar e foi, mais ou menos desinteressadamente, vendo os acontecimentos do evento. Não conseguiu concentrar-se no que via. Não gostava deste jogo.
“Curioso!”, pensou, “Lembro-me que em tempos gostava bastante”. Fora inclusivé um praticante empenhado e até com bastante jeito. Não conseguia lembrar-se do que o levara a desgostar de uma modalidade da qual tinha mesmo sido praticante. Na realidade, a única modalidade que praticara com alguma regularidade. Rebuscou nas brumas da memória, mas apenas conseguiu vislumbrar que fora algo que ocorrera na infância. Tentou genuinamente lembrar-se dos factos. Não conseguiu lá chegar. Provavelmente não teria sido nada de especial. Um pé torcido ou uma qualquer outra lesão menor que o tivesse afastado dos jogos por uma temporada, o que, naquelas idades, é razão mais do que suficiente para que surjam outras motivações.
“A memória da gente é uma coisa estranha”, pensou, “eu a tentar lembrar-me porque não gosto de voleibol e subitamente lembro-me da professora de história. Lembro-me até do seu nome. Ah Sónia, achava-te boa como milho!”.
Durante alguns instantes a imagem dela passeou-se nítidamente à sua frente. Achou efectivamente estranho lembrar-se dela, com tanto detalhe. Sentiu alguma decepção pois lembrava-se de quase se ter apaixonado por ela. Não evitou sorrir. “Como somos ingénuos quando crianças. Bem vistas as coisas ela nem era assim grande fuzil. Mas admito que me impressionava!”
Deu uma passa profunda no cigarro, bebeu outro gole de Martini, segurou no telecomando e voltou ao zapping.
Canal Playboy. Parou. Decorriam entrevistas com todas as playmates do ano anterior.
Recostou-se no sofá deixando-se ficar a ver enquanto degustava o Martini e sentia encherem-se-lhe os pulmões de poluição tabágica.
Capítulo 2 – O Professor
Andava há já algum tempo preocupado. Parecia-lhe que afinal, aquela não tinha sido uma ideia brilhante.
O Zé, é que tinha razão, saíra-lhe o tiro pela culatra, ou, no mínimo, essa era agora uma fortíssima possibilidade.
O Zé, seu colega de profissão, era um tipo simpático, mas por vezes irritava-o, com aquela sua mania das frases feitas. Talvez por deformação profissional. Dava aulas de Português .
“Queres ter sol na eira e chuva no nabal” dissera-lhe. “Assume que o professor de educação física és tu, e, pura e simplesmente selecciona a equipa para nos representar no torneio inter-escolas, em vez de quereres dar uma de professor bacano”.
Tentara em vão explicar-lhe que era agora demasiado tarde para mudar as regras do jogo, e que, haveria de pensar numa solução.
Fora incumbido de preparar uma equipe de voleibol para representar a escola no torneio anual que envolvia todas as escolas da cidade.
A princípio ficara apreensivo, pois, apesar de ser para ele a preferida, essa era uma modalidade que pouco se praticava naquela escola. Por consequência, mesmo sendo ele “O” professor de ginástica, não tinha uma noção clara de quem jogava bem e de quem nem sequer conhecia as regras. Sabia no entanto, que os alunos do último ano, o décimo segundo, seriam os mais capazes, por serem mais velhos, logo, mais altos e dotados fisicamente.
Buscava uma forma de usar o evento para criar o gosto pelo jogo nos alunos mais novos. Envolve-los de qualquer forma; fazê-los jogar com regularidade.
Foi de repente! Sentiu-se como que atingido por um raio. Viu um clarão, sentiu uma tontura. Subitamente, a ideia estava lá, cristalina como a água de uma nascente virgem. Considerava-se um tipo esclarecido, inteligente e culto, e por isso, não entendia como levara tanto tempo a pensar nesta solução, sobretudo pela sua simplicidade e eficácia. Não era crente, mas começava a convencer-se de que tinha sido bafejado por uma preciosa ajuda Divina.
Meteu imediatamente mãos à obra mesmo sabendo que o ano lectivo acabara de começar.
Sabia que o torneio seria apenas no final do mesmo. Ia necessitar de tempo para concretizar o projecto.
Nas aulas seguintes informou todos os alunos da escola como se faria a selecção da equipe que a iria representar.
Organizar-se-iam, em cada um dos graus leccionados pela escola, torneios inter-turmas.
A turma vencedora de cada um dos graus, representaria o seu grau na fase seguinte, que seria o torneio inter-graus.
A equipa vencedora, provavelmente uma turma do último grau, iria orgulhosamente representar a escola no torneio inter-escolas.
Achou-se um génio!
Dez minutos depois, sentia-se apenas irritado.
O seu amigo Zé, professor de Português, a quem acabara de contar o brilhante plano, dera-lhe uma valente descompostura, por ele não assumir as suas responsabilidades e engendrar um plano destes para que uma das turmas do último grau fosse a seleccionada.
Ele bem argumentara, que era um plano que matava vários coelhos com uma cajadada, uma vez que, permitia forçar a direcção da escola a apoiar, mesmo que contrariada, a prática de voleibol na escola. Permitia ainda colocar todos os alunos da escola a praticar voleibol. Faria com que os alunos mais novos desenvolvessem o gosto pela modalidade por poderem pratica-la desce cedo.
Claro que era previsível o apuramento da equipa de uma das turmas do último grau. Essa era a prova indiscutível de que o seu plano era perfeito!
O Zé, respondera-lhe que estes motivos eram apenas desculpas de mau pagador, e que, a sua solução, era afinal, apenas e só, por falta de coragem em enfrentar meia dúzia de hipotéticos alunos desagradados com as suas escolhas.
Ao Zé, só admitia que dissesse coisas deste calibre, por serem realmente muito amigos, e porque ele, o Zé, era irmão da nova professora de história que era solteira e de quem ele andava a tentar aproximar-se. ”Ah Sónia, Sónia!”. Bloqueava completamente sempre que, por qualquer motivo, pensava nela. Esperava intimamente que ninguém se tivesse apercebido disso. As suas segundas intenções em relação à professora Sónia, eram na realidade primeiras!
O facto é que, não entendia como, faltava agora apenas um jogo para se apurar a turma representante da escola. Havia portanto apenas duas com a possibilidade de ganhar o troféu da escola, e assim, representa-la no inter-escolas, sendo que, uma delas era do nono grau.
Uma trupe de fedelhos que nem metro e meio de altura teriam. Claro que, apesar de tudo, a outra turma candidata era, como previra, uma do décimo segundo grau, mas, apesar de esperar que eles vencessem com naturalidade, estava subitamente carregado de dúvidas e maus pressentimentos. Tinha razões para isso, afinal, fora incapaz de prever que uma turma do nono grau conseguiria superar todas as outras dos anos superiores, estando agora em posição de poder, ainda que apenas no plano teórico, vencer o torneio.
Capítulo 3 – A Sónia
No ringue, o professor cogitava. Tinha feito tudo para ganhar aquele jogo.
Tinha, por uma questão de princípio, convocado os miúdos para o jogo e mantivera-os no banco de suplentes.
É certo que naquela fase, já a partida estava matemáticamente perdida.
Decidira por isso dar-lhes uma oportunidade.
Quando se dirigiu ao banco de suplentes e chamou pelo Lopes, este recusou-se a entrar. Pareceu-lhe hesitante, mas, acabou por justificar que estava indisposto com algo que comera.
Opta pelo Dias.
O Dias anuncia-lhe que não era só o Lopes quem estava indisposto, mas todos eles, uma vez que, tinham almoçado juntos e comido todos o mesmo.
Sentia-se confuso e embaraçado não tanto pela derrota certa, mas pela absurda diferença no marcador.
Era aquilo a que chamavam “uma cabazada!”
Estava contudo em paz com a sua consciência. Ele tentara trazer a equipe do décimo segundo ano, mas foram os do nono quem ganhou o troféu.
Para complicar tudo, os miúdos tinham apanhado uma intoxicação alimentar. Fora forçado a formar uma equipe de recurso, com base numa omissão do regulamento, que, permitia reforçar a equipe com professores não especificando quantos. Aquela intoxicação caìa-lhe como sopa no mel.
O pavilhão estava cheio como um ovo.
Na bancada, Sónia, a professora de história, observava atónita o desenrolar dos acontecimentos.
O barulho das claques era ensurdecedor, mas parecia estranhamente afastado, como se viesse de longe.
Percorreu as bancadas com o olhar e deu-se conta de que toda a bancada da direita, aquela onde se encontrava, estava em silêncio. O público parecia desalmado, como se apenas ali estivessem os seus corpos. Na bancada oposta, ululavam os apoiantes da escola rival festejando o bailarico.
Sónia, sentiu um súbito arrependimento.
Nas últimas semanas sentira a aproximação do professor de ginástica.
Agradava-lhe!
Quando ele lhe falou da táctica que planeara para vencer o torneio, ela apoiara-o. Fizera-o apenas por simpatia porque não entendia nada de desportos, afinal, História era a sua área. Realizava que deveria ter dito isso mesmo, que não entendia de desportos, não dando azo a que agora se sentisse cúmplice por tê-lo apoiado e incentivado.
Na verdade, agira sem mesmo ter ouvido o que ele lhe dissera.
Era agora claro que aquela ideia de fazer uma equipe de recurso com professores deixando os miúdos no banco, fora um absurdo.
Aguardou o final da partida em silêncio, sentindo-se também ela desalmada.
Epílogo
No canal Playboy, o falatório das playmates prosseguia!
Sentiu o calor da ponta do cigarro nos dedos. Esmagou-a no cinzeiro.
Pegou no telefone e ligou-lhe. Havia já alguns meses que não se viam. Seria interessante saber que recordações guardava daquele dia.