Noite de futebol

Saíram e dirigiram-se ao café mais próximo que, estranhamente, se encontrava praticamente vazio naquela sexta-feira. Sentaram-se, pediram uma cerveja e um pires de tremoços.
Enquanto esperavam, trocaram a habitual conversa de amigos que há muito não se vêm, perguntaram-se se estava tudo bem, se tudo em ordem com as famílias, com os empregos, etc.
Chegam as cervejas. Chegam os tremoços. Na televisão, o comentador, anuncia já a formação das equipas. O Assunto volta-se para a bola. Mau início de campeonato para a equipa do amigo, excelente para a sua, o que lhe deu motivos para algumas provocações. Apostas sobre a continuidade ou não do novo treinador Holandês.
Enfim começa o jogo. Conversam sobre a táctica. Se o Benfica devia jogar num esquema de 4x4x2, num 4x3x3, ou ainda, noutro qualquer. O jogo ia passando tremoço após tremoço, lento e chato. Parecia que a táctica adoptada tinha sido afinal a do todos-ao-molho-e-fé-em-Deus. Os copos vazios. Pede-se outra rodada. Chega o intervalo.
Mais conversa fiada, agora sobre gajas. Não podia deixar de ser. Dois portugas num café a ver a bola, aproveitam invariavelmente o intervalo para comentar as gajas. Nunca consegui entender, mas o facto é que o intervalo é dedicado às gajas. Deve ser para nos convencermos de que as gajas vão à bola connosco.
Recomeça o jogo. Pede-se outra rodada, e sim, com mais tremoço por gentileza.
Mais do mesmo. Jogo chato porque aquele gajo não é ponta-de-lança de raiz, o outro é trinco adaptado, e o central, um perna-de-pau. Nenhum deles tem noção muito clara de quais as funções específicas de cada uma destas posições, mas mencionam-nas com a naturalidade e a confiança de qualquer treinador de primeiro nível. Credibiliza-lhes a argumentação.
O jogo aproxima-se penosamente do fim com um empate sem golos. Pede-se a quarta e última rodada porque se faz tarde e ainda há que conduzir uns cinco quilómetros até casa.
Pagam a conta, fazem mais umas provocações aos respectivos clubes. Despedem-se. Mete-se no carro, coloca o cinto de segurança, o motor a trabalhar, mete a primeira e arranca.
Alto! "Boa noite! Os seus documentos e os da viatura por favor!". "O senhor ingeriu álcool?", "Sim, duas cervejas há três horas atrás", Nunca se conta toda a verdade a um polícia, por mais obvia que seja.

O balão acusador denuncia: 0,64!
"Vai ter que acompanhar-me à esquadra para fazermos um contra-teste".
O contra-teste confirma a opinião do balão: 0,64 gramas de álcool por litro de sangue.
"Conhece o novo código? É assim: A coima é de duzentos e cinquenta euros, e, se você não quiser pagar, apreendo-lhe os documentos. Sim, os seus e os da viatura! Mas se pagar já, eu dou-lhe o recibo da coima e devolvo-lhe os documentos."
Pagou. Recebeu os documentos e o recibo. Meteu-se no carro, colocou o cinto de segurança, o motor a funcionar, engatou a primeira e partiu para casa.
Subitamente sentiu-se possuído por uma certa inquietação. E se aparece outra brigada de trânsito? Por aí não há problema, decidiu. Tenho o recibo da multa, por isso, não vão autuar-me de novo. Felicitou-se pelo sistema. Pagara, é certo, mas obtivera um salvo-conduto para conduzir com uns copos a mais. Resolve por isso ir ainda beber um último copo junto ao mar da Costa da Caparica.
Relaxa por momentos, mas a inquietação volta.
Não se sente bêbado. Na realidade sente-se até bastante bem, lúcido e concentrado. Mas o balão acusara-o. O balão dissera que estava com 0.14 acima do permitido por lei. Então, segundo a lei, ele estava bêbado. Isso era um facto! Podia ser comprovado com o recibo da multa que repousava na carteira, por isso, decide que o melhor era dirigir-se directamente para casa.
E se, por qualquer acaso ou má sorte, se envolve num acidente e morre alguém? De quem é a culpa? Sua que estava bêbado e se permitiu conduzir?! Do polícia que o autuara, lhe devolvera os documentos e o mandara seguir viagem?! Do legislador que produzira o novo código?! Sentia-se agora demasiado bêbado para poder ajuizar, mas decidiu que sua, a culpa não seria, afinal, segundo a opinião do balão delator, confirmada pelo contra-teste, atestada pelo recibo da coima, e ratificada pelo agente da lei, ele estava bêbado, logo, incapacitado perante a lei, para julgar se estaria em condições de conduzir.
Acalmou-se de imediato. Louvou novamente o sistema que finalmente protegia um cidadão cumpridor como ele, e conduziu calmamente até casa.